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Simpatia é quase venda


Autor: Anna Carolina Miguel, da Zona Oeste 29/04/2005 Seção: Gente
* Kathia Conrado, da redação

Brincalhão, Bernardo conquista todo mundo no trânsito
À primeira vista, o ambulante Bernardo Saeta Fernandes, de 35 anos, não difere muito de outros vendedores de balas em sinais de trânsito do Rio. Mas logo chama a atenção pela educação e camaradagem com que trata – e é tratado – por passageiros de ônibus e motoristas que transitam pelo retorno da Estrada Marechal Fontenelle, em Sulacap (Zona Oeste). Ele trabalha há um ano por ali, e já coleciona fãs e fregueses. Foi parar até no Orkut - badalada rede de relacionamentos virtuais.
"Boa noite, patrão", "muito obrigado" e "bom descanso" são expressões que fazem parte do dia-a-dia de Bernardo. "Assim me faço mais aceito. E acho que é nossa obrigação. Este comportamento deveria ser natural, mas passou a ser uma qualidade por conta do estresse das pessoas”, diz o vendedor zen.
Mas ele admite que o jeito diferente de abordar os clientes é também uma boa estratégia de marketing. “As pessoas não esperam um tratamento tão gentil por parte daqueles que vivem de um trabalho informal e costumam ser até discriminados”, explica.

Batente em tempo integral
Engarrafamento é prato cheio para vendasO resultado tem sido positivo. “Acho esse vendedor super simpático. Sempre que volto da academia ele pergunta como foi a malhação. No início me assustei, pois não tinha reparado que era óbvio que alguém suada e com roupa de ginástica, só poderia ter acabado de fazer algum exercício físico. Agora, cada vez que ele me vê diz que estou ficando bonita e sarada, mas com muito respeito é claro”, conta Beatriz Lemos da Silva, de 19 anos, de Realengo.
Bernardo sabe que é preciso ter limites quando se trata de invadir a intimidade alheia. “Tudo deve ser dito com jeito e aos poucos. Se você observa a pessoa e, no dia seguinte, faz um relatório completo dela, logicamente ela ficará assustada. O objetivo não é espionagem, e sim, entender o freguês”, explica o ambulante.
Não é só o vendedor que se beneficia de sua capacidade de observação: “Quando volto do trabalho pergunto a ele se viu minha esposa passar com meus filhos. Se ele responde que não, já sei que terei que buscar as crianças no colégio, e dali mesmo faço o retorno, sem precisar passar primeiro em casa”, fala Marcos de Almeida Pinho, de 47 anos, morador de Mallet.
Bernardo já foi office-boy, mensageiro, ajudante de cozinha, garçom, pintor de parede, colocador de pisos de madeira e vendedor de planos de saúde. "Em todas essas funções a coisa não deu muito certo e tive que partir para o trabalho de ambulante.”

O freguês Márcio diz que ele não apela
Gentileza importada. Ele também tentou a vida na Argentina. “Voltei porque lá as coisas estavam mais pretas do que aqui, e me senti mal em estar sem trabalho e morando de favor na casa de conhecidos”, explica.Mas a temporada valeu a pena. Na volta, ele modificou seu jeito de encarar a vida – e as dificuldades.
“Acho que o país somos nós mesmos e as coisas só vão para a frente quando fazemos por onde. Infelizmente demorei um pouco para perceber isso. Foi preciso ir até outro país para sentir que no Brasil faltava gentileza gratuita. Lá na Argentina fui muito bem tratado e decidi mudar de atitude quando chegasse ao Rio.”
Para o freguês Márcio Lopes Cabral, de 50 anos, morador de Sulacap, a volta do vendedor para sua terra tinha que acontecer. “Ele é o típico carioca. Se aproxima dos carros, fala olhando no olho, sempre sorridente e já se fez querido. O lugar dele é aqui. Confesso que nem sempre compro, mas sempre abaixo o vidro para cumprimentá-lo. Ele é um exemplo de vendedor, pois consegue anunciar o produto sem forçar a barra. Não apela, não pede, só oferece e, assim, não nos sentimos coagidos”, analisa Márcio.
Todo dia, Bernardo sai cedo de casa. Ele mora em Sepetiba e segue para Santa Cruz, ambos bairros da Zona Oeste, onde compra os doces para vender. O processo de ensacar as balas acontece em trânsito: no segundo ônibus, que o leva até Bangu, onde faz uma parada para o almoço no restaurante popular. Até chegar em seu ponto de vendas, próximo ao supermercado Carrefour , ele já vai vendendo os saquinhos pelo caminho.Bernardo chega ao sinal de trânsito às quatro horas da tarde, para aproveitar o grande movimento de veículos na hora do rush. "Fico lá até tarde e só chego em casa depois da meia-noite", diz o ambulante. O motivo para este vendedor se deslocar por cerca de 50 quilômetros, diariamente, não é apenas o grande fluxo, mas também a clientela fiel, conquistada em um ano e meio de trabalho no local.

Simpatia faz parte do marketing pessoal
Quando perguntado sobre seu lucro, Bernardo desconversa e diz que ganha o suficiente para sobreviver. Depois, diz que ganha cerca de dois salários-mínimos e meio. Logo depois, brinca e diz que a concorrência é grande que não pode 'entregar o ouro'.Os clientes nunca deixam de comprar suas balas, mesmo quando o fluxo dos veículos não permite que o motorista pare o carro. “Eu corro e levo o saquinho até eles. Uns fazem o retorno e me dão o dinheiro, mas outros pagam no dia seguinte. Eu tenho até uma freguesa que prefere me pagar por mês”, conta Bernardo, que cobra R$ 1 por qualquer produto.“Nunca tomei calote. As pessoas sabem que esse é meu trabalho e por isso me consideram”, acrescenta ele, que registra os fiados de cabeça.

De Sulacap pro Orkut
Mas há também quem não veja com simpatia o trabalho dos ambulantes nas ruas, e os culpe pela dificuldade no trânsito. Bernardo compensa o transtorno com gestos de solidariedade. “Eu agradeço àqueles que esperaram a minha venda e, não raro, deixo de vender para ajudar a empurrar carros que enguiçam por ali. Se precisar, troco pneu furado e tudo.”Com tudo isso, a popularidade de Bernardo vai longe. Rogério Santos, de 17 anos, morador de Mallet conta: “Descobri na internet uma comunidade de Orkut falando do cara. Lá dizia o seguinte: se você se amarra no vendedor de balas que fica no retorno do Carrefour Sulacap esta é a sua comunidade. Fiquei surpreso porque eu achava que só eu reparava na simpatia do cara.”Segundo Rogério, quando o ambulante não está no ponto de venda todos percebem. “Uma vez estava chovendo e quando o ônibus passou pelo sinal, um dos passageiros esticou a cabeça para falar com o cara, mas ele não estava lá. O passageiro lamentou e perguntei se o conhecia. Ele disse que não, mas que achava o cara muito sangue bom”, fala Rogério.
O vendedor gosta do que faz, mas espera que a experiência no mercado informal seja temporária. “Não me envergonho de vender doces, mas isso é um trabalho e não um emprego. Se no momento é isto que me sustenta, com dignidade, devo aproveitar, mas gostaria de algo melhor. Acho prazeroso receber o carinho das pessoas. Tem gente que nunca compra nada, mas faz questão de buzinar e falar comigo”, afirma Bernardo.
Apesar de tanta simpatia, Bernardo não tinha noção de que era tão querido. “Isso tudo me surpreende. Fico grato e atribuo isso ao reconhecimento do meu trabalho. A gente ganha pouco, mas se diverte”, revela, correndo atrás de mais um carro que buzinou para chamar sua atenção.




Matéria publicada por Anna Carolina Miguel, em 29/04/2005 no site:

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